"A cozinha é o mundo mais fascinante da casa, o mais coletivo. Um espaço que reúne sobrevivência, prazer, refinamento e civilização." (Nélida Piñon)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Os Gastrochatos II - Crônica


Como fã de Walcyr Carrasco, não poderia deixar de citá-lo novamente, com a publicação da sua mais recente crônica, publicada da Edição Especial da Veja São Paulo - Comer e Beber 2009/2010.

Para quem ainda não leu a primeira Crônica dos Gastrochatos, está aqui.



Os Gastrochatos

"Sou guloso, não nego. Pesquiso receitas, descubro restaurantes. Gosto de comida de botequim bem feita e fujo de lugares onde a decoração é mais importante que a cozinha.

Aprendi uma regra desde cedo: com peixes, vinho branco; com carnes, tinto. Mas regras existem para serem quebradas, na vida e no paladar. E por muito tempo deixei a intuição fazer a alegria de meu estômago.

Mas agora entrou em moda a harmonização. A escolha de um cardápio se tornou tão complexa quanto meu primeiro vestibular. O termo vem de harmonia.

Segundo o dicionário Aurélio: "Conjunto ou sucessão de sons agradáveis ao ouvido; ciência da formação e encadeamento dos acordes". Em gastronomia, significa conciliar bebidas com pratos.


Na teoria, é lindo. Na prática, uma chatice. Faz a alegria dos gastrochatos, que gostam de exibir dotes culinários. Esses tipos, tão em voga atualmente, gostam de falar difícil para mostrar que sabem mais. Eis um comentário típico:

– Esse vinho mais encorpado, de notas vibrantes e muita personalidade, é ideal para acompanhar carnes com sabor intenso.

Deu para captar? É uma linguagem mais difícil de destrinchar que um peru de Natal! Eu me pergunto se a pessoa sabe o que está falando. O que é realmente a personalidade de um vinho? Como resolver o dilema de um camarão, suave ou intenso, dependendo da receita?

Fui a um jantar em um hotel em que, a cada prato, se servia um vinho diferente para, justamente, harmonizar. Lembro-me vagamente: fui carregado para meu apartamento.

No caso dos vinhos há uma tradição para combinar pratos e rótulos. Os enólogos conhecem o assunto. Mesmo sendo muito engraçados ao descrever vinhos de forma um tanto obscura. Antes de beber, fico torcendo o nariz em busca do tal "aroma levemente frutado" e depois estalo a língua à espera das "notas de cacau e madeira". E aguardo o sabor "intenso e vibrante": vou levar um choque e sair pulando? Quando recebo propaganda, penso: alguém acha que, se eu não entender, vai vender mais?

Mas e os azeites, chás e cafés? Não se pode mais escolher um bom extravirgem para a salada. É preciso saber se combina, a origem, a característica... Já fui a degustação de azeites em que me fizeram provar uma colherinha de cada tipo. No final, se me dessem óleo diesel, não perceberia a diferença. Es-pe-cialistas em chás insistem até em harmonizá-los com meu estado de espírito. Ouvi o conselho de um especialista:

– A escolha do chá deve ser minuciosa, para pacificar sua alma ou despertar sua força interior...

Mais fácil bater na porta de um pai de santo!

E os cafés? Adoro tomar café desde garoto. Sempre fui feliz. Agora descobri que não passo de um ignorante. Tal como os vinhos, os tipos de café exigem conhecimentos enciclopédicos. Não são mais fortes ou fracos. Mas "aveludados", "com notas de cereais", "amadeirados", "intensos", "suaves" ou "persistentes". Segundo a descrição dos vendedores, alguns "têm caráter". Bem...

Com tanta falta de gente com caráter, é bom saber que pelo menos o café tem!

Quando algum chato discorre sobre minúcias da harmonização, eu pergunto:

E minha intuição, onde fica?

E meu gosto pessoal?

Tudo bem: conciliar paladares tem seu valor. Mas não deve ser obrigação ou símbolo de status.

Uma boa refeição é uma experiência de vida, que não pode ser reduzida a uma ciência exata de combinações de sabores.

Para mim, a harmonização que conta é entre os amigos à mesa, onde a refeição e a bebida são parte do afeto que quero compartilhar."


Fonte: Walcyr Carrasco - Veja São Paulo - Edição 23/09/2009

28 comentários:

  1. AMEI...Muito bom e concordo plenamente. Beijão.

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  2. Tânia,
    Esse negócio de harmonização acho interessante, mas sem necessidade de combinar tudo. Existem pessoas que estudam vários tipos de harmonização, particularmente eu não gosto...prefiro como foi dito, nossa intuição...nada de extremismos...gosto muito do básico, mas claro as vezes dá vontade de comer arroz com champagne nas ocasiões hiper especiais. Adorei o assunto,
    bjs1000
    Paula

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  3. Harmonização é bom senso. O resto é frescura! ótimo texto!

    Abcs

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  4. Harmnização é bom senso. o resto é frescura! Ótimo texto. Abcs Raul

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  5. Tânia,
    Crônica boa e engraçada, como a primeira. O mais interessante, sem dúvida, é o preciosismo usado pelos entendidos em vinhos (e agora, em cafés!) na descrição da característica palatares dessas bebidas. Muitas vezes a gente fica pensando: "aaffe, de onde é que tiraram isso, que eu não percebi, ao tomar a minha dose?". Mas eu acho que muitos alimentos têm mesmo uma certa, digamos, 'personalidade', como é o caso da berinjela, do jiló etc, que dão a nota em qualquer receita em que entrem. As uvas (e o vinho!) também têm características especiais, uma vez que as uvas absorvem o sabor, o aroma e outras coisas mais, do meio onde crescem. Mas isso não justifica os exageros que a gente vê, né? Quanto à harmonização, lembro-me de ter lido uma entrevista dada pelo ator Marco Nanini (à Cláudia Cozinha) em que ele dizia que "mete farofa" em tudo que come, até numa lasanha (kkkkk!). Mas ele está certo, mas vale um gosto do que ...
    beijinho!

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  6. textos perfeitos como sempre,adorei sua inciativa de reproduzir esta cronica. bjs

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  7. Tania, o Walcyr é ótimo...suas crônicas sempre condizentes com a realidade! Conhecia os "enochatos", mas gastrochatos já engloba o restante...Infelizmente, a gastronomia virou sinônimo de glamour e hoje muitos pagam para comer as "invencionices" da moda. Há uns 12 anos atrás, muito antes do sucesso de Ferran Adriá, num curso escutei do chef Laurent Suadeau a seguinte frase: "No futuro, o bom restaurante seria composto por uma família inteira trabalhando, fazendo comida regional, caseira, sem modernidades". Alguém duvida??!

    Bjss

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  8. Adorei! 100% de acordo. Me lembrou um ótimo texto que li esses dias:

    http://viajeaqui.abril.com.br/vt/materias/vt_materia_250995.shtml

    Vale a pena, morri de rir quando li.

    Bjs

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  9. Ameeeeeeeeeeeiiiii! Aqui em Rib. Preto nao chega Vejinha, eu sinto a maior falta, entao veio a calhar sua postagem :-) Ri ate!! Obrigada, beijos

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  10. Adorei, assim, como gosto do seu blog.Receitas muito, muito boas-
    Parabéns, bjssssssssssss

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  11. Nao conhecia o texto e adorei! É tão verdade isso ... Em alguns lugares eu fico querendo fugir de tanta gente chata!! eheheheh

    bjs!

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  12. É isso aí...eu penso da mesma forma amiga...Acho que "eles" teriam um peti se me vissem comer arroz com feijão e banana picada...KKKKK...bjs

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  13. Interessante e divertente questo testo.
    Ciao Daniela.

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  14. Continue nos presenteando com essas matérias.
    Assino em baixo!
    Bjs e saudades!

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  15. amo essas cronicas do Walcyr!!!!é tudo de certo que existe nesse mundo dos que dizem o que é certo ou errado..das coisas que saboreamos!!!!ele diz com toda clareza os que "digamos" entendidos pensam que são ..!!!....amo muito..bjus amiga

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  16. Tânia,
    Muito boa.
    É, parece que com o tempo tudo que é simples irá desaparecer. Será preciso conhecer todos os detalhes, para então sentir o prazer.
    Será possível?
    Beijo.

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  17. Ola Tania. Obrigado pela visita e comentários! Abracos Raul

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  18. Já ri muito com essa crônica! Adorei!
    Bjs.

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  19. Estou completamente de acordo, penso que apesar de haver uma certa "ciência" na harmonização de paladares e vinhos nada é mais importante do que a nossa experiência particular, até porque a forma como os sabores cheiram e sabem é distinta em cada individuo... Quando provo vinhos apenas tento perceber se me sabe ou não bem com a comida em causa, o resto passa-me o lado ehehehe

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  20. Olá minha amiga!como vai?eu ando mtooo cansada acredite...mas enfim...achei a crónica muito engraçada, é sem dúvida alguma a realidade. Mto obrigada pelos seus comentários e peço deculpa pela falta dos meus.Beijão grande.

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  21. Concordo plenamente com o autor! Amei o post! Bjinhos

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  22. Concordo em gênero, número e grau! Hora de comida é hora de relaxar e dar risada, e não de ficar mostrando que sabe mais do que os outros (se é que sabe alguma coisa de verdade). Sobre enologia, meu pai conta que o chefe dele, que também é enólogo convidou ele e os outros funcionários para uma noite de queijos e vinhos e levou vinhos caríssimos, mas segundo o meu pai, muito fortes. E adivinha o que o meu pai fez? Disse que o vinho tava muito forte e misturou com guaraná "para suavizar" heheheheeheh. Imagina a cara do chefe dele hehehehe. Mas é isso aí mesmo, as pessoas não deviam se importar tanto com isso. Beijos

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  23. Eu tinha lido na Vejinha este texto é ri muito... Impagável... Tudo tem sua época.. Gastrochatos, Ecochatos, e por aí vai..AH, só para comentar dos talinhos das alcachofras, mummy faz salada com elas, fica tão bom..>Bjs.

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  24. Tânia! Excelente sua iniciativa, matéria excelente, concord plenamente com o autor. Parabéns Buss!!!

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  25. Adorei! Nossa, como eu concordo com ele! Hoje não podemos mais dizer que gostamos apenas de vinho Rose na refeição com medo de que tenha alguém olhando pra gente... Ai, como eu acho essa falta de liberdade chata! Tudo e todos têm o seu espaço! Abaixo aos radicalismos!!
    Beijos, Paula
    p.s. - respondi o seu comentário lá no blog.

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  26. Minha amiga, as crônicas dele são demais...um olhar sempre cômico à gastronomia, essa eu adorei...as pessoas estão mesmo ficando assim, gastroenologicamente chatas...rsss...de vez em quando eu confesso que tenho que tomar cuidado pra não virar uma...que coisa!
    Abraço!

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  27. Adorei a crônica. Ele pegou muito bem o espírito da coisa, ou carácter! Sem menosprezar os profissionais que trabalham corretamente para garantir uma qualidade melhor ao consumidor final, deixo de lado os gastrochatos que gostam mesmo é de se exibir! Continuemos felizes com o nosso vinhozinho, cafézinho e nossa saladinha com o melhor azeite que o nosso bolso permite!
    bjs

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